A janela crítica de Daido Moriyama
A grande retrospectiva da obra do fotógrafo japonês mostra que nem sempre a câmera funciona como uma janela para o mundo; pode produzir ruídos inconvenientes

O público brasileiro se acostumou com a exuberância de seus fotógrafos. Em geral, vindos da fotorreportagem, os donos da câmera gostam de documentar o que veem, e terminam quase que invariavelmente por refinar o olhar na direção da arte e da cultura. Em geral, fotógrafos costumam atuar como janelas para o mundo, muitas vezes mostrando a desigualdade social associada à beleza. Bem, este não é exatamente do japonês Daido Moriyama, um dos maiores fotógrafos de seu país. De alguma forma, ao longo de uma carreira de 60 anos, esse artista gráfico nascido em Osaka em 1938 foi fechando o postigo de sua janela para o mundo. Seu percurso de reelaboração do status da linguagem fotográfica pode ser visto naquela que é a maior retrospectiva já realizada de sua produção no hemisfério Sul. Daido Moriyama: uma retrospectiva ocupa dois andares do Instituto Moreira Salles em São Paulo. São 250 peças, entre ampliações, painéis e livros e revistas de época que podem ser folheados – que atravessam as décadas de 1960 até a 2020. Moriyama percorreu muitos lugares do mundo, inclusive a cidade de São Paulo onde esteve em 2007 para as comemorações do centenário da imigração japonesa no Brasil e teve oportunidade de captar imagens do centro da cidade, inclusive o bairro da Liberdade, povoado pela comunidade japonesa. Mas não pôde comparecer à abertura da retrospectiva em São Paulo. “Ele já não sai do Japão”, diz Thyago Nogueira, coordenador de fotografia contemporânea do IMS, curador da exposição e editor da revista Zum, dedicada à. “Está muito cansado. Mas está em contato comigo o tempo todo, monitorando a exposição.” A exposição é um panorama da produção, “mas não esgota o assunto”, segundo o curador. Nogueira recebeu uma bolsa para organizar a exposição. No final de 2021, ficou um mês em Tóquio trabalhando nos arquivos da Fundação Daido Moriyama de Tóquio. Nesse período, conviveu com o artista e sua visão das coisas do mundo. “Daido é um pensador da imagem”, afirma Nogueira. “Teve tantas vivências e passou por tantas fases, dúvidas e crises, que criou ele próprio uma teoria da imagem.” Trata-se de uma teoria nada sorridente, mas crítica e não raro dolorosa. A questão que o atormenta desde o início era a seguinte: “A fotografia é capaz de mostrar o mundo e assim mudá-lo?” A resposta é ambígua, e depende de como encarou as várias fases da carreira. Como tantos colegas, iniciou a carreira como repórter fotográfico. Trabalhou para revistas e publicações politicamente engajadas, tanto como repórter quanto como designer. Publicou 300 livros ao longo da atividade. Aos poucos, envolveu-se com a luta política no Japão, bem como a contracultura, quando se jogou na cultura hippie das drogas, sexo, pop, um panorama e a vontade de emancipar o sistema das amarras de todo tipo. Tornou-se líder da chamada Geração Provoke, artistas que assimilaram elementos da pop art, assim expôs séries de exposições como Provoke e Acidentes – esta última realizada nos Estados Unidos e influenciada pelas fotografias de acidentes automobilísticos de Andy Warhol. Mas a abordagem do japonês não quer transformar acidentes em fetiches, mas os converte em objeto de reflexão sobre os limites da violência americana. Se até então fotografar significava para ele abrir janelas, nos anos 1970 deu com a cara na janela fechada, como todas as suas gerações. “Foi assim que ele refutou o dogma da fotografia como uma tarefa iluminadora”, diz Nogueira. Passando por uma profunda depressão, em 1972 Moriyama lançou a série Adeus, Fotografia. Foi quando afirma ter sentido ódio pela arte que praticava, além de uma vontade de lhe dizer adeus. A exposição traz um grande painel de fotos estouradas que pertencem a essa fase, onde nem mesmo o fotógrafo sabe a origem de parte do material. Assim, tenta eliminar a função mimética e mesmo artística da arte fotográfica. Tudo se dissolve em imagens tremidas, escuras e avessas à decifração estética. Felizmente, recuperou sua pulsação acelerada para trabalhar no final dos anos 1980. Excursionou pelo mundo, buscando imagens nas ruas de cidades como Nova York, Paris, Buenos Aires e São Paulo. Sua obra foi consagrada mundialmente em 1999, quando apresentou uma retrospectiva no SFMoma, em San Francisco. Passou a ser celebrado como o flagelo da cultura pop. Consciente da nova missão, tratou de investir criticamente sobre os ícones da Tóquio pop, como na série Linda Mulher (2017), um passeio pelo centro irradiante e cegante dos mitos femininos de Tóquio, em especial do bairro de Shinjuko, onde ele mora e cujo cotidiano continua a documentar. ---- DAIDO MORIYAMA: UMA RETROSPECTIVA - Entrada gratuita - Até 14/8/2022 IMS Paulista Avenida Paulista, 2424 - São Paulo/SP Terça a domingo e feriados (exceto segunda) das 10h às 20h.