David Dolcini e a tradição familiar na madeira
Nascido e criado em Codogno, no sul da Lombardia, o designer italiano David Dolcini carrega no DNA uma longa tradição familiar ligada ao artesanato e ao trabalho com a madeira — uma história documentada a partir de 1838.
Influenciado pelos ensinamentos do mestre Bruno Munari (1907 – 1998), artista, designer e pensador italiano, o designer italiano David Dolcini adotou o método munariano como ferramenta prática e poética em sua vida e carreira. “Design é uma atitude, é um modo de viver a vida, um modo de enfrentar os problemas do dia a dia”, reflete. Para ele, projetar não é exclusividade de designers: trata-se de uma mentalidade aberta à experimentação, repetição e observação — valores que permeiam sua prática. Como consequência dessa ligação com Munari e o encontro com Ferid Amini, proprietário da Amini Carpets, nasceu a mostra “Viaggio nella Fantasia”, realizada no showroom da empresa em Milão. Um tributo a Munari, a exposição com curadoria e ambientação de Dolcini exibiu duas coleções de tapetes: “Viaggio nella Fantasia”, inspirada no livro homônimo, com 21 pontos a serem ligados de forma livre e criativa; e outra baseada nas “Máquinas Inúteis”, objetos sem função prática que ganham forma como tapetes cinéticos em lã e seda. Já “Timemade”, na Volumnia Space, em Piacenza, com curadoria de Marco Sanmichelli, diretor do Museu do Design, da Triennale Milano, revela a dimensão artesanal do trabalho em madeira de Dolcini, onde o tempo, o gesto e o fazer se entrelaçam. Nascido e criado em Codogno, no sul da Lombardia, o designer David Dolcini carrega no DNA uma longa tradição familiar ligada ao artesanato e ao trabalho com a madeira — uma história documentada a partir de 1838. Desde a infância, foi introduzido ao universo da matéria-prima por seu pai, que o ensinava a identificar árvores, tipos de madeira e seus usos mais nobres, durante passeios pelos bosques de Codogno. Para comprar sua primeira Vespa, Dolcini começou a trabalhar na serraria da família — uma experiência que inicialmente desgostou. “Na época eu odiei, hoje agradeço. Foi ali que aprendi a escutar o material e a respeitar o tempo das coisas”, relembra. Após cursar o liceu artístico em Piacenza e nutrir o desejo de ser artista, descobriu no design o ponto de equilíbrio entre arte, técnica e fazer manual. Ingressou no curso de arquitetura no Politécnico de Milão, mas logo migrou para o design, área mais afinada com seu modo de pensar e criar. Antes mesmo de concluir a universidade, deu os primeiros passos na carreira profissional na histórica Luceplan, onde começou como estagiário e logo foi contratado. A partir dali sua trajetória seguiu guiada por método, intuição e um vínculo cada vez mais forte com processos artesanais de criação — influenciado pelo mestre Bruno Munari e suas abordagens sensíveis de projetar. SLOW DESIGN: O JEITO TRANQUILO DE PROJETAR O designer italiano David Dolcini define seu estúdio como “uma pequena boutique”, onde o tempo é tratado como elemento essencial do processo criativo. Para ele, o projeto deve ser respeitado em seu ritmo próprio: “Trabalhamos de forma lenta, tentamos respeitar o tempo do projeto e não os prazos, que são sempre intransigentes.” Cada novo trabalho começa com uma pesquisa extensa, que extrapola o universo do design e toca em campos como história, ciência, arte e cultura local — uma abordagem alimentada pelas experiências que Dolcini acumulou vivendo e viajando por diferentes partes do mundo. Em seu método, ideias emergem quase de forma fisiológica, resultado da escuta atenta e da observação do cotidiano. Evitando a pressa, Dolcini busca criar objetos com ideias simples, que se revelam aos poucos e permanecem interessantes com o tempo. Viajar foi sempre o grande sonho de David Dolcini, inspirado pelas histórias do pai que viveu no Quênia nos anos 1970. Ao terminar seu primeiro estágio, quando perguntado sobre o futuro, respondeu sem hesitar: “Quero conhecer o mundo.” No entanto, sua carreira avançou rapidamente — foi promovido a gerente de projetos na Luceplan — o que adiou momentaneamente esse desejo. A vontade de tocar outras realidades falou mais alto: em uma viagem à Alemanha, conheceu um arquiteto chinês com estúdio em Xangai e, dois meses depois, já estava na China. A partir daí, seguiu uma trajetória rica em experiências internacionais, a maioria ligada a ONGs. Para Dolcini, atuar com ONGs foi essencial para entender o poder transformador do design em situações reais, muitas vezes críticas, em que o gesto, o tempo e o fazer assumem outras escalas. “Projetar é uma forma de viver e se relacionar com o mundo”, afirma. No Quênia, trabalhou em projetos sociais e de energia solar; no Brasil, levou ideias sustentáveis como o uso do bambu, abundante na região amazônica, mas culturalmente pouco aproveitado. Em Moçambique, viveu por oito meses, absorvendo o ritmo local e refletindo sobre o tempo como experiência subjetiva. Em 2011, retornou à Itália, conheceu sua esposa, uma espanhola de Valência, e se mudaram para a Espanha. Após 12 anos, a família decidiu voltar para a Itália, fixando-se em Piacenza, onde todas essas vivências seguem influenciando sua visão de design como atitude de vida. TIMEMADE: ENTRE GESTO E SILÊNCIO Na vastidão silenciosa da Basílica de San Pietro, em Piacenza — templo renascentista onde a luz dança sobre o mármore antigo — repousam, quase em sussurro, as obras de David Dolcini. Suas peças, em pequena escala, mas intensas em presença, pontuam o espaço como sementes de contemplação entre os ecos do tempo. É ali, entre colunas seculares, que “Timemade” encontra seu palco ideal: um lugar onde o gesto humano se transforma em meditação tangível. O projeto nasceu em 2019, como uma investigação pessoal sobre o tempo e o fazer manual. Durante o confinamento do Covid, Dolcini viu no isolamento a oportunidade de aprofundar sua pesquisa. “Quando trabalho com as mãos, meu pensamento desacelera. É nesse tempo expandido que eu aprendo”, afirma o artista. “Timemade”, o tempo que faz, é um alfabeto tátil, um espaço de aprendizado. Em 2022, durante a primeira mostra do projeto, Dolcini conheceu Marco Sammicheli, diretor do Museu do Design da Triennale Milano, que gostou muito de sua pesquisa. Iniciaram uma parceria que resultou em oito peças únicas para uma exposição na Triennale— uma delas agora integra a coleção permanente da instituição. Desde então, Sanmichele o acompanhou em seu percurso. Em 2023, levaram “Timemade” a Copenhague, até que, graças a Enrica De Micheli, o projeto encontrou seu cenário ideal na Galleria Volumnia. Para David Dolcini, a madeira não é apenas matéria — é memória, natureza e respeito. Ligado a ela desde a infância, por herança familiar e por sua paixão pelas montanhas, Dolcini desenvolveu uma relação profunda com esse material orgânico e ancestral. “A madeira é um material vivo — e talvez por isso, ninguém resista a acariciá-la ao tocá-la”, afirma. Em seu estúdio instalado em uma antiga casa em Codogno, ele trabalha na maioria com madeiras reaproveitadas: nogueira, cedro, freixo, faia, até mogno e nogueira americana. Nenhuma escolha aleatória, mas sim uma escuta do que cada peça tem a dizer. Cada objeto é feito inteiramente à mão, com cortes minuciosos realizados com serras japonesas e ferramentas que ele mesmo construiu. Dolcini vê no design uma responsabilidade que vai além da estética. O objeto carrega valores, histórias, e pode imaginar futuros. “O design italiano sempre projetou o amanhã. Hoje, mais do que nunca, precisamos parar, escutar e voltar a imaginar.” Para ele, o futuro do design será menos sobre criar formas novas e mais sobre reconectar com o essencial. Entre o gesto e a forma, Dolcini planta sementes de futuro.