Música _ 17 junho _ por Mauro Ferreira

Roberta Sá festeja a solidez macia dos 20 anos de carreira

Cantora celebra conquistas das duas décadas de estrada, lamenta ter podado a sensualidade para fugir dos assédios no início da trajetória e revela que a maternidade a tornou mais tolerante com as eventuais imperfeições da voz.

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“Minha carreira é uma grande investigação dos meus anseios artísticos, e isso é uma delícia”, reflete Roberta Sá enquanto discorre sobre os 20 anos de sucesso em entrevista a Flo. Sim, não parece porque a aparência jovial desmente os 44 anos da artista, mas já faz duas décadas que o Brasil se encantou em 2005 com o álbum de estreia de uma jovem cantora de origem potiguar e criação carioca que se lançara ao mundo com o disco Braseiro, sustentando uma leveza na voz que dava frescor a um repertório dominado pelo samba. Naquele momento, ninguém poderia prever que, 20 anos depois, duas mil pessoas se espremeriam na pista e na arquibancada do Circo Voador – casa de show preferida pela juventude do Rio de Janeiro – em 24 de maio de 2025 para cantar todas as músicas do álbum no show festivo que Roberta chamou de Braseiro 2.0. Vinte anos e 11 álbuns depois, Roberta Varella de Sá é uma das cantoras de maior prestígio no universo da MPB – com ênfase no samba – e celebra a efeméride com show retrospectivo, Tudo que cantei sou, estreado em 3 de junho. No roteiro revisionista, mas com espaço para citação de funk de Anitta e para músicas de jovens compositoras como Dora Morelenbaum e Marina Íris, Roberta revisita os repertórios de álbuns como Giro (2019), no qual gravou somente músicas compostas por Gilberto Gil para ela, fato único na história de Gil. Ao longo de 20 anos, Roberta Sá também ganhou músicas de Adriana Calcanhotto (Me erra), Martinho da Vila (Amanhã é sábado) e Moreno Veloso (Mais alguém e Meu novo Ilê), entre outros compositores, além de ter dedicado álbum primoroso ao cancioneiro do baiano Roque Ferreira, Quanto o canto é reza (2010), gravado com o Trio Madeira Brasil. Mas também garimpou muita música nos discos que encontra nos sebos de Copacabana, mítico bairro carioca onde mora. A cantora até brinca e diz que personifica “a velhinha de Copacabana”. “A grande alegria da minha carreira é continuar produzindo vinte anos depois. Essa é a conquista mais incrível. Quando eu lancei o Braseiro, tudo o que eu queria era carreira longeva. Não queria um sucesso estrondoso. Até porque, naquela altura, eu nem aguentaria o peso de uma exposição em massa. Queria construir uma carreira sólida e macia, e isso eu conquistei”, avalia. Na vida pessoal, a grande alegria de Roberta Sá foi o nascimento da primeira e por ora única filha, Lina, que veio ao mundo em 19 de dezembro de 2022, dia em que Roberta fez 42 anos. “Sou uma cantora muito melhor depois que a Lina nasceu porque, sendo bem honesta e direta, não tenho mais tempo para ficar me torturando pelo agudo que não alcancei. Queria ser uma cantora perfeita e a maternidade joga uma bigorna em cima de qualquer tentativa de perfeição. A grande mudança é essa: estou mais carinhosa comigo. Não consigo mais cumprir horários rígidos. Às vezes tenho que cantar com a voz mais cansada porque não dormi direito cuidando da minha filha”, relativiza. Na voz límpida e suave, ainda hoje tratada com aulas de canto com Felipe Abreu e com acompanhamento fonoaudiológico com a também cantora Mariana Baltar, Roberta Sá carrega influências de cantoras que transitaram pelo samba sem se restringir ao gênero, como Elza Soares (1930 – 2022), Elizeth Cardoso (1920 – 1990), Alcione, Clara Nunes (1942 – 1983) e Gal Costa (1945 – 2022), entre outras artistas referenciais. “Essas cantoras me formaram e seguem comigo, seja na maneira de cantar ou na escolha de repertório. Ultimamente tenho escutado muito Dora Morelenbaum e ela também está me formando, assim como Juliana Linhares, minha conterrânea. Esse caminho está aberto, e isso é muito bonito. Você consegue reverenciar essas referências sem insegurança. Quando você é jovem, você quer ser única, quer ter autenticidade, e você ainda não tem estrada para isso. A estrada me deu essa segurança para pegar essas referências que vão formando um universo”, pondera Roberta Sá. A estrada também deu a Roberta a consciência de que perdeu oportunidades de se expor como uma cantora sensual para driblar os assédios, ainda existentes, mas muito mais comuns e descarados há 20 anos quando a cantora apareceu no mercado da música, antes e ainda hoje com muitos homens em posição de comando. “É muito assédio que a gente passa, sabe? Se eu contasse todos os assédios que sofri, cairia muita gente. A mulher tem que ser respeitada no seu espaço de trabalho sem ter que sair para tomar um drink para conseguir fechar um contrato. No começo da minha carreira, eu me vestia até aqui (aponta para o pescoço). Tinha medo de ser sensual mesmo sendo uma mulher sensual. Recebia tanta cantada que não valia a pena ser sensual. Vejo essas meninas de hoje, com os corpos mais livres, com a autonomia do decote... Acho isso tão bonito, tão libertador... Sinto que foi tirada de mim uma forma de expressão devido à quantidade de assédio que sofri. Precisei me blindar para continuar a existir e fazer o meu trabalho”, lamenta. Hoje, Roberta Sá faz o seu trabalho como cantora e também como comunicadora. Graduada em Comunicação Social, usa essa formação para interagir com o público nas redes sociais, alimentadas com assuntos relacionados à música. “Me apropriar desse lugar de comunicadora não diminui a cantora. De uns tempos para cá, tenho gostado de fazer material para as redes sociais. Sou de uma geração que cresceu com as divas inatingíveis. Hoje, as divas estão perto da gente”, compara. No mundo virtual e sobretudo no real, a comunicativa cantora – gata escaldada – se blinda com equipe formada por lideranças femininas, a começar pela empresária e produtora Fernanda David. Mas discute questões artísticas com o marido - Pedro Seiler, pai de Lina, a filha de dois anos e meio que se tornou a prioridade de Roberta – e ressalta que a convivência é mais saudável com músicos de cabeças mais jovens, como o bandolinista Alaan Monteiro e o violonista Gabriel de Aquino, partners da cantora no show dos 20 anos Tudo que cantei sou. “É sempre um homem que recebe os louros, sabe? Mas, como diz Adriana Calcanhotto, quem me inventou fui eu. A gente se inventa”, resume Roberta Sá, pronta para mais 20 anos